1 – A saúde no Brasil durante os séculos XVIII e XIX.
A história das práticas e políticas de saúde no Brasil é marcada por avanços e retrocessos nas conquistas dos direitos de cidadania no setor, portanto, permeada por lutas e conflitos de classes e frações de classe que disputaram e disputam na arena político-econômica interesses antagônicos e auto excludentes e, consequentemente, projetos societários opostos, envolvendo não somente a esfera da saúde, mas de todos os setores sociais e econômicos.
No texto Política de Saúde no Brasil (2000) de Inês Bravo, a autora faz uma análise histórico-crítica sobre a emergência e o desenvolvimento das políticas de saúde no Brasil, as suas características em conjunturas sócio-econômicas e políticas determinadas, o tencionamente e disputa de interesses em seu torno por grupos de classes distintas.
Destaca os avanços, conquistas e retrocessos no campo dos direitos relacionados à saúde em momentos políticos variados, como em a redemocratização da política brasileira na década de 80 que culminou com a aprovação da Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, com o reconhecimento público e legal da saúde como direito do cidadão e dever do Estado, primordialmente.
Também ressalta os momentos de refluxo nos movimentos e nas lutas democráticas em torno da saúde, bem como na década de 1990 em que as políticas neoliberais de ajuste estrutural e a redefinição das funções do Estado e de sua relação com a sociedade civil e com o mercado financeiro e produtivo culminaram com a desregulamentação e desmonte dos direitos até então conquistados, não só na esfera dos serviços de saúde, mas em toda a área social.
Antes destas considerações analisa como se deu o processo de emergência das primeiras formas de intervenção do Estado na implementação de ações voltadas para a área da saúde no Brasil. E também os momentos que antecederam a sua ação neste setor e como e quais instituições atuavam para garantir atendimento à população durante os séculos XVIII e XIX, no Brasil.
Logo depois avalia a situação da saúde no país antes, durante e depois do golpe civil militar de 1964, encerrando seus pressupostos com a crítica do período de consolidação do neoliberalismo no cenário político-econômico brasileiro e suas implicações para os serviços de saúde.
Tal modelo de desenvolvimento provocou o fortalecimento da iniciativa privada na oferta de serviços de saúde, contribuindo para a solidificação do projeto privatista das grandes empresas capitalistas e para o sucateamento dos serviços e equipamentos da saúde pública, enquanto fruto do processo contínuo de desfinanciamento e desresponsabilização do Estado em sua implementação como política pública, universal e de direito do cidadão.
Antes do século XX, isto é, durante os séculos XVIII e XIX no Brasil, as primeiras medidas voltadas para o atendimento médico à população eram realizadas por instituições filantrópicas de cunho caritativo e baseadas nos princípios liberais. Não eram consideradas políticas públicas e muito menos executadas pela ação estatal, estavam, portanto, fora do campo dos direitos, situando-se nos limites da benemerência e do caritativismo filantrópico.
2 – As primeiras práticas de saúde como política pública estatal.
É, no entanto, no início do século XX, principalmente nas décadas de 1920 e 1930, que surgem as primeiras iniciativas de ação governamental na área de saúde, como a criação das CAPS – Caixas de Aposentadoria e Pensões, em 1923, conhecidas como Lei Elói Chaves.
As CAPS destinavam benefícios para os trabalhadores segurados, como os ferroviários, estivadores e marítimos, inicialmente, incluindo assistência médico-curativa e fornecimento de medicamentos.
Tais políticas, assim como as demais políticas sociais da atualidade, tinham a funcionalidade tanto de garantir as condições de reprodução e valorização da força de trabalho, viabilizando serviços e bens de consumo que possibilitavam a sobrevivência dos trabalhadores.
Além disso, contribuem para enfraquecer e suprimir a luta de classes e os conflitos sociais que ameaçam a hegemonia burguesa, garantindo assim as condições de reprodução ampliada do capital e de sua acumulação, na medida em que também simbolizam ganhos e benefícios para a classe trabalhadora.
Durante a década de 1930 o Estado, sob pressão das reivindicações e lutas de classe, começa a assumir a responsabilidade de intervir de forma mais sistemática e contínua nas expressões da questão social por meio de diversas políticas sociais, dentre elas a saúde pública.
Nesse contexto, tal política caracterizava-se por ações de combate as endemias através das campanhas sanitárias de abrangência nacional, como as campanhas de combate à malária, à febre amarela e outras doenças que adquiriram o status de endemias se espalhando por todo o país e preocupando as classes dominantes, haja vista que eram consideradas como doenças das classes subalternas e que poderiam contaminar a elite da época.
Outro motivo de força maior para se intervir e evitar o espraiamento de tais endemias, não era somente a preocupação com o bem-estar social da população, mas, sobretudo, a constante insatisfação dos exportadores e importadores de mercadorias, posto que receavam serem contaminados por meio do contanto com a costa brasileira e, posteriormente, contaminarem seus países de origem.
A burguesia nacional logo lançou o movimento campanhista visando evitar estes empecilhos e uma futura instabilidade na economia e no mercado produtivo e de circulação de mercadorias.
3 – As políticas de saúde no período da Ditadura Civil-Militar brasileira: prevalência do projeto privatista.
Durante o período ditatorial no Brasil o bloco de poder dominante estabeleceu um padrão de intervenção na sociedade e de enfrentamento das tensões e conflitos que integrava ações e políticas de assistência e ao mesmo tempo de repressão.
Caracterizava-se por uma nova forma de intervir nas expressões da questão social que, no entanto, foram ampliadas e aprofundadas neste contexto. O governo objetivava legitimar-se socialmente e garantir a inviolabilidade da sua hegemonia.
Houve nesse momento histórico um relativo fortalecimento e privilegiamento dos interesses privados no setor da saúde, ocorrendo um declínio da saúde pública e abrindo-se espaço para a ampliação da medicina-previdenciária que abrangia a maior parte da população urbana e estendeu-se para a rural, incluindo os trabalhadores autônomos e as empregadas domésticas.
As práticas eram de cunho curativo, assistencialista e especializada. Expandiu-se a indústria farmacêutica e a produção de equipamentos hospitalares para atender as demandas advindas dos interesses privados do empresariado, haja vista o grande número de hospitais construídos neste período histórico, sendo que seu financiamento se deu em grande parte via a desvinculação de recursos do fundo da previdência.
4 – Expansão do projeto de Reforma Sanitária: Constituição Federal de 1988 e instituição do Sistema Único de Saúde (SUS).
Já na década de 1980, em pleno processo de redemocratização e abertura políticas e de fortalecimento e emergência de novos sujeitos e forças políticas no cenário nacional, há evidentes sinais de fortalecimento e espraiamento dos interesses da sociedade civil, representada por vários sujeitos, em relação ao direito de acesso aos serviços de saúde de forma universal, gratuita e com qualidade.
O movimento de reforma sanitária ganha forças com o apoio de partidos políticos de oposição, dos movimentos sociais e de várias entidades da sociedade civil, além dos profissionais da saúde. A disputa se acirra entre os dois projetos que brigam pelos rumos da saúde no país – diga-se o projeto reformista, de um lado, representando as demandas da sociedade civil organizada politicamente, e o privatista, de outro, representando os interesses do mercado de consumo e a lucratividade do capital.
Porém o movimento reformista voltado para uma saúde universal, hierarquizada, regionalizada e integral se dar melhor nesta disputa durante a década de 1980 e o Sistema Único de Saúde (SUS) é construído durante o processo constituinte e estabelecido na Constituição Federal de 1988, sendo, pelo menos constitucionalmente, um dos maiores e melhores modelos de gestão pública da saúde no mundo.
Os sujeitos coletivos envolvidos nesta luta histórica tinham e têm por objetivo a universalização dos serviços públicos de saúde; melhores condições de saúde nos equipamentos públicos e melhoria nas condições de saneamento básico; maior oportunidade de acesso a uma saúde de qualidade e integral que efetive tanto as ações de promoção, prevenção como as de cunho curativo;
Lutavam, portanto, para o estabelecimento de um novo padrão de organização, gestão e financiamento da saúde pública – o SUS – que possibilite a participação democrática da população nos mecanismos de decisão do setor via Conselhos de Saúde, instituídos em todos os níveis da federação.
A maioria das pautas reivindicadas pelos reformistas foi inscrita na Carta Magna de 1988, dentre elas a universalização da saúde, suprimindo as discriminações entre segurados e não-segurados e trabalhadores urbanos e rurais, a qual passou a ser considerada direito do cidadão e dever do Estado nos processos de fiscalização, controle e regulamentação dos serviços prestados.
5 – Beneficiamento do projeto voltado para o mercado ou privatista: consolidação das políticas neoliberais na década de 1990.
No entanto, apesar de todas estas conquistas significativas, na década de 1990 a Reforma Sanitária perde forças e espaço no debate em torno da saúde, frente ao fortalecimento do projeto de privatização do setor e da emergência avassaladora das políticas neoliberais.
Fortaleceu-se assim a desregulamentação, a privatização e a flexibilização dos serviços públicos, incluindo os de saúde, via redução dos “gastos” na área social e a transferência da responsabilidade em sua implementação ao setor privado, seja por meio do mercado de consumo ou das entidades filantrópicas sem fins lucrativos, o famigerado Terceiro Setor.
Este fato se deve, sobretudo, à expansão do conservadorismo e dos interesses mercadológicos após 1988, com a reatualização do liberalismo e a refuncionalização do Estado; ao enfraquecimento dos movimentos sociais e da participação política da sociedade civil nas disputas de poder, devido ao seu desestímulo diante as precárias condições de atendimento e da não efetividade das diretrizes e princípios constitucionais do SUS etc.
6 – Considerações finais.
Diante todas as análises até aqui empreendidas conclui-se que as diretrizes constitucionais referentes à implementação da política de saúde são postas em segundo plano na agenda governamental a partir dos anos 90, no Brasil.
Conforme as ponderações e os pressupostos de Behring (2003) todos os setores sociais são afetados com a reestruturação produtiva, além, sobretudo, dos processos de trabalho em que há rebatimentos contundentes nas suas relações e condições de efetivação, consubstanciados na flexibilização dos vínculos trabalhistas e na desregulamentação da legislação do trabalho, assim como da precarização e sucateamento das suas condições de realização.
Este cenário de ofensiva do capital e desmonte dos direitos sociais conquistados a duras penas afetou drasticamente a qualidade dos serviços públicos no país, principalmente os da saúde e a consolidação dos preceitos legais que a reconhece como direito público.